“Dezenas de pessoas receberam mais que uma gleba de terra
pública, o que é um despautério diante da proposta da reforma agrária”, informa
o historiador.
A atuação do Instituto de Reforma Agrária de Santa
Catarina – IRASC no estado catarinense, na década de 1960, durante a ditadura
militar brasileira, culminou numa “antirreforma agrária”, diz Gert
Schinke, autor de O golpe da reforma agrária(Florianópolis: Insular,
2015), à IHU On-Line. Segundo ele, desde 1964 o órgão foi “paulatinamente
instrumentalizado para executar mera ‘regularização fundiária’ e distribuição de glebas em
supostas terras devolutas pertencentes ao Estado de Santa Catarina”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Schinke explica
que sua pesquisa documental apresenta dados até então desconhecidos na
historiografia regional de Santa Catarina, demonstrando que tanto a “suposta
regularização fundiária” iniciada nos anos 1960 quanto a distribuição de terras
devolutas “pouco ou nada tinham a ver com a questão da ‘justiça fundiária’,
mas, sim, com a entrega de terras públicas para os correligionários da Aliança
Renovadora Nacional - ARENA, partido da ditadura, alguns também para o fantoche Movimento
Democrático Brasileiro - MDB, antecessor do PMDB, para pessoas que não
tinham qualquer vínculo com atividade no campo”.
De acordo com o historiador, a operação antirreforma agrária “também eliminou as dezenas de
‘áreas de uso comum’ no litoral e serra catarinense”. Tal processo, explica,
gerou “nitidamente o vertiginoso surgimento de megaempreendimentos imobiliários
que, no litoral de Santa Catarina, são emoldurados com a paradisíaca paisagem
das baías e montanhas à beira-mar”.
Gert Schinke é historiador e ecologista. Atualmente
é presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Mentalidade Marítima –
Inmar, e ex-presidente da Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses
- FEEC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as novidades de seu livro sobre a
atuação do Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina – IRASC nos anos
1960?
Gert Schinke - É preciso salientar que o período em
que o IRASC perpetrou a maior fraude fundiária na história
recente do país se passa na ditadura civil-militar, pano de fundo que
possibilitou a forma como agiu e implementou a ‘antirreforma agrária’. Fundado
em fins de 1961, o órgão iniciou uma singela reforma agrária sob o
governo de Celso Ramos que foi bruscamente interrompida com o golpe,
em março de 1964. Daí em diante foi paulatinamente instrumentalizado para
executar mera ‘regularização fundiária’ e distribuição de glebas em supostas
terras devolutas pertencentes ao Estado de Santa Catarina. Minha pesquisa revelou dados absolutamente
desconhecidos na historiografia regional: tanto a suposta ‘regularização
fundiária’ quanto a distribuição de terras devolutas pouco ou nada tinham a ver
com a questão da ‘justiça fundiária’, mas, sim, com a entrega de terras
públicas para os correligionários da ARENA – Aliança Renovadora Nacional, partido
da ditadura, alguns também para o fantoche MDB – Movimento Democrático
Brasileiro, antecessor do PMDB, para pessoas que não tinham qualquer
vínculo com atividade no campo. Consumou-se uma fraude total à proposta da reforma
agrária. Sobre esta ainda se consumou outra fraude, a jurídica/legal, pois o
Estado entregou terras que pertenciam à União dentro da Ilha de
Santa Catarina, assim como entregou glebas em território que pertencia ao
Município de Florianópolis. Houve, portanto, uma dupla fraude, uma sobre a
outra. Parece coisa do demônio.
IHU On-Line - Quais as implicações da atuação do IRASC no
estado?
Gert Schinke - O processo atingiu 147
municípios catarinenses dos então 197 existentes, mais concentrados nas regiões
litorâneas, território alvo maior da obra — a titulação para especulação
imobiliária, operação esta que propiciou a ‘plataforma fundiária’ sobre a qual
ela pode prosperar sem rédeas. Em um curto período de redondos 15 anos, o IRASC entregou
a montanha de 16.000 títulos nessa região, sendo que destes, exatos 996 na
capital Florianópolis, 90% dos quais na Ilha de Santa Catarina, cidade
campeoníssima em quantidade dentre todos os municípios catarinenses nesse
período. A ‘operação antirreforma agrária’ também eliminou as dezenas de ‘áreas
de uso comum’ no litoral e serra catarinense, relação que publico no livro e
exemplifico com algumas ‘privatizações’ executadas à força por via do IRASC.
Não por acaso, nos últimos anos percebe-se nitidamente o vertiginoso surgimento
de megaempreendimentos imobiliários que, no litoral de Santa
Catarina, são emoldurados com a paradisíaca paisagem das baías e montanhas à
beira-mar. Resulta desse processo, totalmente caótico em muitos casos, uma
deformação total na planificação urbana, criando conurbações monstruosas
desprovidas de infraestrutura de todo tipo, especialmente viária e sanitária. A
reforma agrária que Celso Ramos havia iniciado ficou no papel, na
lei, e esta foi solenemente ignorada.
“Os números revelaram concessões de glebas monstruosas,
verdadeiros latifúndios, a considerar sua localização – em plena Ilha de
Santa Catarina”
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IHU On-Line - Por quais razões afirma que ao invés de uma
reforma agrária, houve uma antirreforma agrária?
Gert Schinke - Fazendo a compilação dos
dados que minerei, chegou-se a evidenciar a proporção dos títulos entregues a
pessoas ligadas ao campo, redondos um quarto, e aqueles entregues a pessoas sem
vínculo com o campo. Pior, em ambos os conjuntos, constatando que dezenas de
pessoas receberam mais que uma gleba de terra pública, o que é um despautério
diante da proposta da reforma agrária, além de lesar a sociedade inteira ao
adotar esse critério, ou não critério sob a ótica de se fazer justiça social e
zelar pelo patrimônio público. Além desta constatação, os números revelaram
concessões de glebas monstruosas, verdadeiros latifúndios, a considerar
sua localização – em plena Ilha de Santa Catarina, para citar somente um
dos exemplos, onde duas pessoas receberam nada menos que seis glebas. A maior
gleba entregue pelo IRASC na capital teve 644.000 metros quadrados,
entregue para uma pessoa jurídica que, poucos anos depois, a revendeu para uma
pessoa que dela fez um loteamento, hoje o Bairro da Daniela. Mas isso seria
pouco diante da soma com a reunião de várias glebas que algumas famílias
receberam, chegando a dois milhões de metros quadrados, equivalente a 200
hectares. Estão todos lá com seus nomes, tamanhos e datas de entrega. Em
verdade, ao invés de desconcentrar a propriedade, ela concentrou ainda mais a
propriedade nas mãos de um conjunto ínfimo de pessoas se levadas em conta as
populações totais, tanto da capital quanto do estado, como os números mostram a
seguir. O IRASC entregou 69 glebas, totalizando 44.657.954 m2, 44,6 km2,
somente na Ilha de Santa Catarina. Os 44,6 km2 equivalem a 74,7% da área total
entregue na cidade (59,7 km2), três quartas partes do total, portanto. Todas as
demais 930 glebas juntas perfazem apenas uma quarta parte da área entregue na
capital. A conclusão é inarredável: operou-se a maior concentração
fundiária já vista em toda a história.
IHU On-Line - Quais são os documentos históricos que
evidenciam que, ao invés da reforma agrária, houve uma antirreforma?
Gert Schinke - A pesquisa se calcou em
fontes primárias existentes em diversos arquivos públicos espalhados em
diversos órgãos do estado e do município. Tive o cuidado de obtê-los com
autenticação oficial para provar o que revelei, caso venha a ser provocado. De
outra parte, jamais o IRASC, pasme, construiu um mapa no qual ele
apontaria a localização das glebas, tarefa que consegui elaborar com muito
sacrifício e quebra-cabeça, porém, restrito ao distrito do Pântano do Sul, no
extremo sul de Florianópolis, e, ainda assim, somente para as glebas com mais
de 100.000 metros quadrados localizadas naquela região da ilha. O retrato é
‘fabuloso’ e agora pretendo avançar para o restante da ilha adotando o mesmo
critério.
Outra questão, não menos importante, que a pesquisa
revela é a promiscuidade administrativa, o desleixo com o qual era tratado o
processo administrativo. Constatei coisas estarrecedoras, como várias fraudes em
que requerentes a glebas apresentaram-se com nomes errados de forma
premeditada, coisa que a ‘consultoria jurídica’ poderia ter detectado, bastando
para isso olhar os documentos, o que, constatei, não fazia. Havia lotado no
órgão um rol de ‘consultores jurídicos’ que estavam lá apenas para assinar
pareceres ao final do processo como mera formalidade. Não revisavam sequer os
editais publicados no Diário Oficial do Estado, cheios de erros de toda
sorte. Também se mostra óbvio que o órgão não tinha um cadastro geral das
pessoas às quais concedeu glebas, pois este poderia inibir, talvez, a concessão
de várias glebas para uma única pessoa, um escárnio diante do zelo pelo patrimônio
público e diante da sociedade totalmente alijada do processo. As medições
das glebas também foram feitas de forma tão precária que até hoje surgem
conflitos entre vizinhos em Florianópolis por causa disso, além da
precariedade na localização geográfica das mesmas, coisa que chega ao
folclórico: há vários casos em que é virtualmente impossível localizar a gleba
devido a não existência de marcos ou sinais geográficos que indiquem onde ela
está no espaço. No que diz respeito à fraude perpetrada contra o Município, o IRASC ignorou
solenemente o domínio territorial na Ilha de Santa Catarina que a Coroa havia
repassado a ele nos idos de 1823, mediante a cessão do polígono chamado ‘Meia
légua em quadro’, cujo mapa e documento de cessão público no livro também de
forma inédita. Na ilha, portanto, o Estado entregou terras que não lhe
pertenciam, tanto da União quanto do Município, um despautério
jurídico/administrativo total.
IHU On-Line - Como se deu a divisão e a ocupação das
terras em Santa Catarina durante esse processo de “reforma agrária” iniciado
nos anos 1960?
Gert Schinke - Celso Ramos iniciou
uma singela reforma agrária tentando imitar, em certa medida, seu colega Brizola,
no RS, que empreendeu um processo mais autêntico e intenso. Vivia-se um momento
de enormes expectativas quanto à efetivação das chamadas ‘reformas de base’ que Jango defendia, todas elas tendo fortes bases
políticas muito bem organizadas em todo tipo de movimento social, dentre os
quais se destacavam os sindicatos de lavradores e camponeses Brasil afora. Em
ambos os estados do sul, e de resto em todo país, o processo foi truncado pelo golpe
militar. Mais uma vez, como em inúmeras vezes anteriores, a reforma agrária foi
golpeada e não se consumou, coisa que ainda está por ser feita neste país do
grande latifúndio improdutivo e de enorme contingente de sem-terras.
Em Santa Catarina, no entanto, ao contrário do Rio
Grande do Sul, o órgão continuou suas atividades como se nada de anormal
tivesse acontecido. Tabulei as entregas de concessões ano a ano por parte do IRASC em Florianópolis,
o que resultou um gráfico muito ilustrativo: mostra a curva no período no qual
se intensifica a entrega de títulos, justo em meio ao período mais duro da
ditadura civil-militar, que entre 1972 e 1974 apontou mais de 40% das
concessões na capital, fiel termômetro para o que aconteceu de resto no estado.
“As medições das glebas também foram
feitas de forma tão precária que até hoje surgem conflitos entre vizinhos em
Florianópolis por causa disso”
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IHU On-Line - Que destinos foram dados a essas terras
concedidas pelo Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina?
Gert Schinke - Em meio à ditadura civil-militar e sob o jugo do sistema
capitalista sem rédeas patrocinando o mais implacável modelo desenvolvimentista
na história recente do país, rapidamente o maior capitalista comeu o menor.
Minha constatação é de que talvez um por cento das glebas ainda esteja nas mãos
daqueles que as receberam pelo IRASC. A imensa maioria, quase a totalidade
destas glebas, foi parar nas mãos de especuladores, muitos munidos de
informações privilegiadas, por vezes obtidas por via de uma rede de
‘despachantes de terras’, vários deles do próprio quadro de funcionários do
órgão, praticando clara corrupção e advocacia administrativa. Falar hoje em uma
onda de corrupção sem falar dessa época obscura é retratar a história com
miopia que distorce a compreensão do fenômeno do país. Acaba por se mostrar uma
meia verdade, pois ela também existiu em larga escala durante a ditadura
civil-militar, fato que acabo evidenciando apenas com o exemplo de como foi
feita a concessão de terras públicas, ainda que limitado a um único estado da
federação.
IHU On-Line - Como era a produção agrícola e agropecuária
no estado de Santa Catarina antes e como ficou depois da atuação do Instituto
de Reforma Agrária de Santa Catarina?
Gert Schinke - A ‘operação antirreforma
agrária’ foi deflagrada quase concomitantemente à ‘revolução verde’, processo
que detalho no meu outro livro chamado ‘ECOPLAMENTO – Teoria que explica o
processo de assimilação do colapso ecológico por parte do sistema capitalista
global’ e que operou a produção agropecuária na monocultura e criações
intensivas, uma das razões para concentrar a terra, condição para que a
anterior pudesse prosperar. Porém, dada a proporção do minifúndio em Santa
Catarina, ela foi menos impactante que em outros estados do sul. No entanto, na Ilha
de Santa Catarina, parte da capital, a operação acabou de vez com o que então
ainda existia de produção agropecuária, revelada no livro com uma preciosa
tabela calcada no Censo de 1970 do IBGE, coisa que o público também
desconhecia completamente. Em Florianópolis, a operação substituiu a produção
agropecuária pela especulação imobiliária que explodiu depois da virada do
milênio. A cidade se tornou totalmente dependente de importação de alimentos e
mantimentos de toda ordem, coisa que até os anos 70 se afiguravam totalmente
diferente e, por pressuposto, muito mais interessante sob todos os pontos de
vista.
IHU On-Line - Quais foram as pessoas envolvidas nesse
processo de divisão das terras em Santa Catarina?
Gert Schinke - Em um dos capítulos do
livro eu analiso a ‘cadeia de comando’, conceito militar que ilustra uma
governança sob um regime ditatorial, qualquer que seja. Sendo o governador
nomeado pelos generais, que, por sua vez, nomeava o Presidente do IRASC,
além do prefeito da capital, era óbvio que os três níveis obedeciam ao comando
de uma política central emanada no nível superior da cadeia — Brasília.
Construí, em caráter inédito também, um quadro no qual nomeio toda a cadeia de
comando existente no período em que o IRASC funcionou, desde o presidente da
República até o presidente do órgão, o que proporciona uma análise das mais
interessantes e curiosas, para não dizer outra palavra. Dou nome aos bois, como
diz o jargão, mas este seria o menor problema. O maior foi a nefasta herança
que legaram para nossa geração e as futuras, que amargarão os preços dos metros
quadrados, absolutamente impagáveis para a grande maioria da população. Um
detalhe curioso chama muito atenção: nenhuma pessoa ocupando os cargos que
apresento no quadro que mencionei, com exceção dos presidentes da República,
foi militar; todos foram civis, o que demonstra uma gestão exercida pelos civis
em perfeita harmonia com a direção militar, fato que vem reforçar o conceito de ditadura ‘civil/militar’ quando nos referimos ao
caráter do regime ditatorial.
IHU On-Line - Que relações estabelece entre o modo como a
divisão das terras foi feita e o fato de ela ter sido feita durante o período
de Ditadura Militar no país?
Gert Schinke - Sob uma ditadura, qualquer
que seja, não há oposição política, não há contestação popular, a primeira
coisa a ser eliminada pelos ditadores. Os governantes podem fazer o que
quiserem. Não há procuradores para defender a sociedade e muito menos os
‘direitos difusos’. Como observei anteriormente, a política se executou através
de uma ‘cadeia de comando’ num período de trevas onde quem protestasse poderia
sumir, ser eliminado, ser perseguido na melhor das hipóteses, como constatou a Comissão
Nacional da Verdade. Ela, no entanto, não pesquisou os crimes contra o
patrimônio, nem os de colarinho branco, coisa que ficou a dever para o país e
que ainda terá que ser feita, mais dia, menos dia. Quando trago à tona crimes
contra o patrimônio, inaugurei um novo campo de pesquisa que se mostrou, em
verdade, como dos mais férteis, pois se constata um verdadeiro buraco negro na
história recente do país e sobre o qual pouco se sabe. A comida que Dom
Pedro II comia é mais comentada que os processos de corrupção durante a
ditadura. Há uma grande tarefa historiográfica pendente.
IHU On-Line - Que consequências a atuação do Instituto de
Reforma Agrária de Santa Catarina trouxe para o estado posteriormente e de que
modo essas consequências se manifestam ainda hoje em relação à questão do uso
da terra?
Gert Schinke - O processo desencadeado
pelo IRASC teve o papel de ‘tampão’ na plataforma fundiária do
estado. No livro apresento o que chamo de ‘Casa fundiária de SC’, um retrato
esquemático da sucessão dos diversos processos que antecederam este período e
que nos dão uma noção mais acurada dos mesmos ao longo dos últimos séculos.
Esta pesquisa, ainda bastante superficial, é agora objeto do meu trabalho
atual. Ela, porém, já propiciou um inédito cruzamento com os ciclos de desmatamento da Mata Atlântica, agora calcado nas
sucessivas ‘plataformas fundiárias’ que alimentaram a destruição da mata e suas
sucessivas regenerações. Hoje, em muitas regiões já vemos a terceira ‘mata
adulta’, produto de duas destruições anteriores, por mais inacreditável que possa
parecer esse fato.
Em Florianópolis, além dos ciclos de desmatamentos
sobrepostos aos ciclos fundiários, a operação do IRASC acabou por consumar
verdadeiros ‘bairros do Irasc’, pois algumas pessoas transformaram suas glebas
em loteamentos clandestinos, os quais, ao longo dos anos, mostraram-se uma dor
de cabeça para os órgãos públicos, e por outro lado, presa fácil para
politiqueiros ‘legalizarem’ terrenos junto aos mesmos. Dar nomes de ruas em
loteamentos clandestinos, encaminhar pedidos de ligação da luz, licenciar obras
e encaminhar emendas de zoneamento urbano se transformaram nas maiores tarefas
da maior parte dos vereadores da capital até bem recentemente. No livro
apresento um ‘menu’ de escândalos fundiários eclodidos nas últimas
duas décadas na capital, período posterior ao IRASC, portanto, motivo pelo qual
bem lhe cabe o título de ‘ilha da magia’.
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“Um
detalhe curioso: nenhuma pessoa ocupando os cargos que apresento, com exceção
dos presidentes da República, foi militar, todos foram civis”
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IHU On-Line - Que área de Santa Catarina o senhor
reivindica como sendo o Parque Natural do Pântano do Sul? Que destino foi dado
a essa área?
Gert Schinke - Esta grande área de
planície inundável felizmente ainda se encontra incólume em sua maior parte, e
justamente a mais frágil face aos ecossistemas que reúne, uma verdadeira
relíquia da Mata Atlântica situada na região sul da Ilha de
Santa Catarina. A planície, de quinze anos para cá, é ‘alvo’ de dois enormes
empreendimentos imobiliários, fator que me levou a iniciar a pesquisa sobre a
sucessão dominial nessa região, focando nos dois empreendimentos que, de
início, mostravam claros indícios de ‘grilagem’ de terra.
Chegando aos documentos do IRASC, constatei que
havia me enganado sobre a suposta ‘grilagem’, pois os documentos mostraram que
os empresários haviam comprado as glebas de pessoas que as haviam recebido pelo
órgão anos antes e, junto com outras glebas menores, reuniram enormes polígonos
territoriais. Porém, em cima de banhado, APP, área onde a lei impede
edificações e urbanização.
O livro publica estas glebas como um mapa no qual estão
localizadas. A ameaça que desde então existe sobre a planície despertou um
grande movimento pela criação de uma unidade de conservação de
proteção integral, cujo processo está engavetado na atual administração
municipal. Devido a esta sabotagem, o processo está sob pressão dos ministérios
públicos para que tramite e chegue a seus ‘finalmentes’, pois até mesmo conta
com a chancela do corpo técnico do órgão municipal de meio ambiente. Hoje no
Brasil, especialmente em cidades como Florianópolis, instala-se uma verdadeira
guerra quando se propõe criar uma nova unidade de conservação, diante da
voracidade da especulação imobiliária que parece não ter freio algum.
IHU On-Line - Que outras áreas de Santa Catarina o senhor
questiona como sendo resultado de um processo ilegal ou equivocado?
Gert Schinke - Todo o litoral catarinense,
como salientei anteriormente, é alvo de cobiça por parte do capital imobiliário e grande parte das áreas ainda
disponíveis hoje tem passivos jurídicos de difícil solução. A par desta
questão, não há uma macroplanificação que indique claramente onde poderá se dar
a expansão urbana. O exemplo mais claro é a retaliação feita no Parque
Estadual da Serra do Tabuleiro, região que recebeu dezenas de concessões por
parte do IRASC e que recentemente foi alvo de uma ‘recategorização’,
eufemismo para tomada de áreas de conservação ecológica para sobre elas
empreender processos urbanísticos, uma calamidade que contou com o apoio de
inúmeros atores da elite política estadual. São inúmeras as áreas com as mesmas
características espalhadas no litoral catarinense e que deveriam ser objeto de
restrições urbanísticas em face da importância que tem para a conservação dos lençóis
aquíferos, da biodiversidade e outros tantos serviços que a natureza
nos presta gratuitamente. Aí reside um fator fulminante: tudo o que é gratuito
não interessa ao capital, não rende lucro para alguém que possa empregá-lo e
fazer acontecer o que alguns chamam de desenvolvimento. É o que mais se vê hoje
no Brasil, infelizmente.
IHU On-Line - Qual tem sido a repercussão do seu livro no
estado?
Gert Schinke - No dia seguinte ao
lançamento, que foi em 2 de junho, e que contou com a presença de João Vicente Goulart, filho do saudoso presidente João
Goulart, deposto pelo golpe e que iniciou um verdadeiro processo de reforma
agrária, nós o protocolamos como ‘peça de denúncia pública’ nos Ministérios
Públicos Federal e Estadual.Há poucos dias, resultante do inquérito instaurado
no MPF-SC, foi exarada uma ‘Recomendação’ (80-2015) que alerta dezenas de
órgãos públicos com atribuições nas questões fundiárias a observarem uma série
de medidas administrativas quanto às denúncias que o livro revela. É o primeiro
passo para a retomada de algumas terras ao patrimônio público dentre as que
foram fraudadas. O livro apresenta exemplos de ações judiciais que reverteram o
domínio de glebas em Florianópolis para a União, evidenciando a
correção da minha tese que mostra a fraude perpetrada pelo Estado de Santa
Catarina, através do IRASC, contra a União e o Município quanto ao tratamento
dado às terras na Ilha de Santa Catarina naquele período.
Acontece que, observada a devida cautela, os procuradores
até agora somente abordavam casos isoladamente, pois ignoravam o ‘conjunto da
obra’ do IRASC, coisa revelada pelo livro. Para muitos deles também acabou
sendo uma surpresa total ao constatarem a dimensão do processo e da forma como
foi executado. O livro instalou um alvoroço e apreensão por parte de inúmeros
setores, alguns diretamente envolvidos com os processos imobiliários e de
planificação urbana, além da área jurídica e política. Mas, acima de tudo, ele
deveria causar um alvoroço nos movimentos sociais ligados às questões
fundiárias, de habitação popular e ecológicos, dentre outros, justo os que
seriam os maiores beneficiários, coisa que caminha lentamente no ritmo em que
os movimentos também caminham.
“Todo o litoral catarinense é alvo de cobiça por parte
do capital imobiliário e grande parte das áreas ainda disponíveis hoje tem
passivos jurídicos de difícil solução”
|
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Gert Schinke - Agradeço imensamente a
oportunidade para divulgar este trabalho que exigiu muito esforço, meu e também
do editor, para que incentive pesquisas também em outros estados que, durante a
época da ditadura, tinham órgãos estaduais para executar supostas reformas
agrárias. Por outro lado, alertar tanto os pesquisadores quanto as autoridades
quanto ao estado precário em que estão nossos acervos históricos. Uma das
coisas mais terríveis e angustiantes que constatei foi o precário estado
de conservação do ‘material restante’ em todos os órgãos pelos quais
circulei em Santa Catarina, e, neste caso, com o agravante de não terem
ainda sido digitalizados, alimento para as traças e fungos.
É evidente que não interessa às autoridades cúmplices
desse processo patrocinado pelos seus correspondentes anteriores, assegurar a
preservação desta documentação. Há, por exemplo, situações em que determinados
processos estão microfilmados já em estado precário, mas sequer os originais
físicos existem mais, consumando um misterioso ‘sumiço’ nos autos dos processos
administrativos, um escândalo por si só. A par de alguns abnegados funcionários
que reconhecem esta situação, mostram-se impotentes diante dos superiores que,
na maioria das situações, optam por destinar os recursos públicos para
coisas das mais estapafúrdias, como, por exemplo, renovação de frotas de
veículos, ‘praxe’ da qual o país parece não conseguir se livrar.
Por Patricia Fachin
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